O tema e lema da Campanha da Fraternidade de 2024 – respectivamente Fraternidade e amizade social e “vós sois todos irmãos e irmãs” (Mt 23,8) – envolve toda Igreja e toda sociedade, porém, representa um sentido particular diante do fenômeno das migrações. Os deslocamentos humanos, com efeito, costumam ser tratados pelas autoridades, pela grande mídia, pelas redes sociais e pela opinião pública como movimentos perigosos, desestabilizadores da ordem social. Com relativa frequência, os migrantes e refugiados aparecem nas páginas de jornais e nas imagens das telas e telinhas ao lado de temas como o tráfico humano, o tráfico e drogas e o terrorismo.
Neste quadro, emerge um desafio para quem trabalha com o universo da mobilidade humana e com os migrantes e refugiados. Como reverter esse cenário negativo e essa visão discriminatória? Além disso, como combater o preconceito e a xenofobia para com o outro, o diferente, o estranho? Em geral, o aumento das migrações tanto em países do Norte quanto nos países do Sul tende a elevar, simultaneamente, o tom de rechaço à chegada de novos estrangeiros. A presença do outro interpela, incomoda, desinstala. Questiona, ao mesmo tempo, os países de saída, os quais não lhe garantiram uma cidadania digna na terra em que nasceram e enterram seis antepassados, mas também os países de chegada, no sentido de “alargar o espaço da tenda”, como diz o profeta Isaías (Is 54, 2-3).
O desafio se desdobra em três vias simultâneas. Em primeiro lugar, o outro não é um inimigo, uma ameaça ou um perigo. Ao contrário, representa uma oportunidade de encontro e de diálogo. Todas as culturas e civilizações, ao longo da história, devem muito às grandes migrações. A identidade de uma pessoa, grupo, povo ou nação ocorre no confronto com o diferente. A presença de estrangeiros oportuniza o intercâmbio de distintos valores e expressões culturais e religiosas. Diz-nos a Doutrina Social da Igreja (DSI) que seja no coração de cada pessoa como no coração de cada cultura existem sementes do Verbo encarnado. Dessa forma, como diz o Documento de Aparecida, os migrantes e refugiados, podem se tornar profetas, protagonistas e mesmo evangelizadores. Apontam para novas alternativas humanas e históricas (Doc. Ap., n. 415).
Depois, o outro pode nos ajudar a recompor o tecido social esgarçado. Vivemos hoje no Brasil e em outros países uma polarização sociopolítica extremamente perigosa. O ódio, a discórdia e a divisão perpassam todas as instituições e instâncias, tais como partidos políticos, igrejas, entidades, ONGs, associações, sem poupar sequer as famílias e as relações pessoais mais íntimas e sagradas. Mesmo no interior da família e da amizade social, assistimos a troca de difamações, a cancelamentos e a oposições que rompem com o fio de confiança das relações humanas. Aqui está a tarefa: reconstruir esse fio de confiança. Sem ele, impossível desenvolver os laços, as ligações, os contatos e as trocas que mantêm vivas as relações vitais e elementares da existência humana. Trata-se, numa palavra, de refazer o tecido sociopolítico que permite a amizade social. A presença de migrantes e refugiados pode, sim, protagonizar novas vias de convivência humana.
Por fim, o simples fato de migrar torna-se uma forma de fazer marchar a própria história. Quando o migrante e refugiado se põem a caminho, forçam outros atores e sujeitos a se deslocarem. A marcha dos que se movem pelas estradas do mundo faz moverem-se uma série de outras forças sociais. O Papa Francisco tem nos alertado para a necessidade da sinodalidade, por um lado, e da “Igreja em saída”, por outro. Em outras palavras, sair de si mesmo, da sacristia e do comodismo para visitar o lugar do outro. Acolher o estrangeiro não é só receber bem quem bate à porta, mas sobretudo ir ao encontro de quem habita os porões e as periferias dos grandes centros urbanos. E, neste caso, as diferenças longe de nos empobrecer, só têm a nos enriquecer reciprocamente.
Por: Padre Alfredo J. Gonçalves, CS, Assessor do SPM