Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS
De acordo com os dicionários, o termo comoção tem a ver como uma emoção forte e repentina. Disso decorre o ato ou efeito de comover ou de se comover. A compaixão, por sua vez, implica um sentimento piedoso de simpatia para com a tragédia de uma outra pessoa, grupo, povo ou categoria, acompanhado do desejo de socorrer as vítimas envolvidas. É ainda a participação espiritual na infelicidade alheia que suscita um impulso altruísta de ternura para com o sofredor. Ou seja, ter compaixão é a virtude de compartilhar o sofrimento do outro; de superar a cegueira ou indiferença frente ao sofrimento alheio. Podemos concluir que, enquanto a comoção tem uma tonalidade mais subjetiva, a compaixão comporta necessariamente uma relação de “sentir com” ou “voltar-se para” outrem. Alguém que, pelos mais diversos motivos e circunstâncias sociais e históricas, torna-se frágil, abandonado, excluído, vulnerável. Vê-se que ambas – comoção e compaixão – se interligam e se complementam na complexidade das relações humanas. Uma caminha ao lado da outra, fortalecendo a solidariedade.
A comoção/compaixão de Scalabrini revela-se precocemente, voltando-se de modo especial para aqueles que, por razões de trabalho, deviam ausentar-se por algum tempo do calor e da intimidade da família, dos amigos e da terra natal. Ainda como sacerdote, na diocese de Como, mostra uma predileção particular para com os mondadores, os carvoeiros e outros tipos de trabalhadores sazonais e/ou sazonais que, para garantir o sustento das respectivas famílias, eram obrigados a passar meses fora de casa. Uma verdadeira migração de resistência: deslocavam-se o pai ou o filho mais velho, por determinado tempo, normalmente a cada ano, para evitar partir definitivamente. Com isso, ainda que de forma precária, conseguiam um ganho extra para permanecerem ligados ao solo e à pátria.
Mais tarde, já como bispo de Piacenza, o coração de Scalabrini, comovido e compadecido, iria de revelar maior que a própria diocese. No decorrer das várias visitas pastorais às paróquias dessa última, ele começa a interessar-se pelos ausentes. Encontra mulheres, crianças e idosos; mas onde estavam os braços fortes dos jovens e homens adultos? A resposta era óbvia: haviam emigrado para terras longínquas, cruzado mares e oceanos, “per far l’America”. No contexto conturbado da Revolução Industrial, os europeus e especialmente os italianos, deixavam os campos aos milhões. Enquanto alguns eram absorvidos pelas fábricas incipientes, grande parte tinha de buscar o futuro em países distantes. “Aqui vivemos como animais, verdadeiras bestas humanas”, diziam as cartas que de lá chegavam. E solicitavam sacerdotes para levar até eles “o sorriso da pátria e o conforto da fé”.
O coração de Scalabrini, por sua intensa e comprovada sensibilidade, não podia permanecer na indiferença. Imediatamente começa a trabalhar com afinco no sentido de encontrar primeiro padres, depois irmãs, que pudessem dedicar suas vidas aos milhões de italianos emigrados nos Estados Unidos, no Brasil, na Argentina e, mais parte, na Austrália, bem como em alguns países do próprio continente europeu. Em pouco tempo, consegue encontrar e enviar um pequeno de missionários para atender os italianos, inicialmente no Brasil e Estados Unidos. Anos mais tarde o grupo deverá ser enriquecido com a presença das irmãs. O próprio J. B. Scalabrini fez questão de visitar os Estados Unidos e o Brasil, numa atenção singular seja para com os emigrantes, seja para com os missionários que os assistiam. Dessa forma, estavam lançados os alicerces das Congregações masculina e feminina, fundadas respectivamente em 1887 e em 1895, com o carisma voltado ao fenômeno das migrações e à causa dos migrantes.
A existência, a intuição, a obra e a solicitude missionária do bispo de Piacenza tem como ícone inegável e primordial seu relato sobre a “Estação de Milão”. Visitando-a certa vez, o fundador se comove e se compadece diante de algumas centenas de pessoas que ali esperavam o trem que as levaria a Gênova, de onde deveriam embarcar para o desconhecido continente americano. O relato de Scalabrini descreve vidas e famílias quebradas, esperanças e sonhos interrompidos, corpos e rostos desfigurados. Se o passado ficara definitivamente para trás, o futuro era ainda muito incerto. Medos, dúvidas e interrogações dominavam o coração, a mente e a alma dos emigrantes que partiam. Felizmente carregavam na bagagem a fé e a uma grande expectativa de recomeçar, o que lhes conferia certo vigor. “Eram migrantes!...”, conclui o pastor Scalabrini num misto indissociável de comoção e compaixão. Sim, emigrantes que, silenciosamente e por isso mesmo eloquentemente, gritavam por socorro!
Não é difícil fazer um paralelo, confrontando essa memorável página escrita por Scalabrini (com lágrimas nos olhos, na voz e nas palavras) com o resumo das atividades de Jesus feito pelo evangelista Mateus. Diz este: “Jesus percorria todas as cidades e povoados, ensinando em suas sinagogas, pregando a Boa Notícia do Reino, e curando todo tipo de doença e enfermidade. Vendo as multidões, Jesus teve compaixão, porque estavam cansadas e abatidas, como ovelhas eu não têm pastor” (Mt 9, 35-36).
Três aspectos de ordem evangélico-pastorais chamam a atenção. Primeiro, temos o verbo percorrer. Da mesma maneira que o profeta itinerante de Nazaré (John P. Meier) “percorria cidades e aldeias”, também Scalabrini jamais se cansou de visitar todas as comunidades e paróquias da diocese de Piacenza, estendendo a própria solicitude pastoral para além das fronteiras diocesanas. Seu coração revelou-se maior que a porção do povo de Deus que lhe estava destinada. Passou a olhar para os milhões de emigrantes que sequer conseguiam emprego e oportunidade nas cidades e fábricas que se enchiam e se multiplicavam. Ao invés disso, tinham que deixar terra e família, emigrando para lugares inóspitos. Como não pensar na “Igreja em saída”, de que tanto fala o Papa Francisco! Por isso, o verbo percorrer, tanto quanto “acolher, proteger, promover e integrar”, faz parte do DNA da Pastoral dos Migrantes
Depois, temos as multidões cansadas e abatidas. Na época de Scalabrini, tais multidões eram os milhares e milhões de camponeses que, de uma hora para outra, tinham que se converter em mineiros ou em operários das fábricas, “soldados da indústria”. Destes, boa parte se inseria nos complexos produtivos da Europa. Porém outros, também aos milhares e milhões, tinham de cruzar o Atlântico, na busca desesperada por novas oportunidades além-mar. Cansados pelo trabalho de séculos, desde seus ancestrais mais antigos, abatidos pelo fato de perderem tudo, para recomeçar longe de casa e dos seus. Os historiadores estimam que, entre 1820 e 1920, cerca de 65 a 70 milhões de pessoas deixaram o continente europeu, sendo que somente os italianos ultrapassam a cifra dos 25 milhões.
Por fim, temos a compaixão. Palavra composta: com + paixão. Quer dizer, estar com na paixão de outra pessoa, grupo ou povo. A paixão costuma figurar como uma espécie de situação-limite da existência humana: fracasso, morte, separação, doença, perda, amor não correspondido!... Em tais momentos, “estar com” não é dar coisas, mas dar-se a si mesmo; ceder o próprio tempo e o ouvido a quem necessita de uma palavra, um olhar, um sorriso, um toque, uma visita!... Às vezes damos dinheiro ou alguma coisa material, para escapar da relação pessoal. “Estar com” é o mesmo que dizer: nada tenho para te oferecer, mas estou do teu lado, vamos ver juntos o que é possível fazer. Assim como Jesus teve “compaixão das multidões cansadas e abatidas”, o bispo Scalabrini moveu-se de compaixão diante do drama de tantos emigrantes que partiam para um destino não raro incógnito, compaixão sempre revestida de profunda comoção.
São Paulo, 1º de agosto de 2022