
A Quaresma, ao longo da história da Igreja, tem sido um período essencial de reflexão e purificação espiritual. É um tempo que convida à avaliação da vida, à reflexão sobre as atitudes e, se necessário, ao arrependimento e à transformação interior.
Por meio de práticas como penitência, jejum, oração e solidariedade, os fiéis são chamados a fortalecer sua fé e se renovar no amor de Deus. O Papa Francisco, em sua mensagem para a Quaresma de 2020, destacou: "A Quaresma é um tempo propício para se deixar transformar pelo amor de Deus e, com isso, transformar a nossa vida em um signo de amor" (Papa Francisco, Mensagem para a Quaresma 2020).
Esse período não se limita a um esforço pessoal de purificação, mas convida a deixar que o amor divino transforme o coração e leve a uma vida mais autêntica, refletindo esse amor em ações concretas, especialmente em relação aos mais necessitados. Em sua essência, a Quaresma é uma oportunidade para um profundo exame de consciência, o reconhecimento das fraquezas e a busca pela transformação interior por meio da graça de Deus.
Esse processo pode ser entendido, simbolicamente, como uma migração interior. Assim como os migrantes abandonam o que lhes é conhecido para buscar melhores oportunidades, todos nós embarcamos em uma jornada espiritual durante o tempo quaresmal, abandonando imperfeições e superficialidades para abrir o coração ao amor de Deus.
A migração é um tema recorrente em diferentes textos da Bíblia e documentos da Igreja. Além das movimentações físicas, também simboliza um processo de conversão e solidariedade. O Evangelho de Mateus apresenta um chamado à acolhida do migrante, que ressoa profundamente na Quaresma. Jesus se identifica com os necessitados e migrantes, convidando à solidariedade: "Pois eu estava com fome, e você me deu comida; tive sede, e me destes de beber; eu era um estrangeiro e você me acolheu" (Mateus 25, 35).
A nossa viagem interior durante o tempo quaresmal não representa apenas um percurso celebrativo rumo à Páscoa, mas também um processo de renovação pessoal que deve se expressar nas relações interpessoais, especialmente com os mais necessitados, entre eles os nossos irmãos migrantes.
Nos tempos atuais, assistimos ao crescimento de ideologias que criminalizam os migrantes, associando-os injustamente à criminalidade. Diante dessa realidade, devemos acolher as palavras do Papa Francisco: "A consciência devidamente formada não pode deixar de fazer um juízo crítico e expressar seu desacordo com qualquer medida que identifique, tácita ou explicitamente, a condição ilegal de alguns migrantes com a criminalidade" (Carta do Santo Padre aos Bispos dos Estados Unidos da América, 10 de fevereiro de 2025).
São João Batista Scalabrini, defensor dos migrantes, reforça essa reflexão: "A verdadeira migração é a do coração, quando ele sai do egoísmo e da superficialidade para ir ao encontro de Deus e da caridade verdadeira". Esse deslocamento interior é essencial para uma vivência autêntica da Quaresma.
Assim como os migrantes enfrentam longas jornadas em busca de uma nova terra, a Quaresma propõe um movimento profundo de transformação interior. A migração espiritual exige coragem para sair da zona de conforto, assim como o povo de Israel, que deixou o Egito em busca da Terra Prometida. Durante a Quaresma, somos convidados a essa "migração" interior, não apenas como um abandono de maus hábitos, mas como uma abertura do coração a Deus. Essa jornada pode ser marcada por desafios, mas é uma oportunidade para fortalecer a fé e purificar a alma. Scalabrini nos lembra: "A verdadeira migração do homem é a do coração, que sai da terra da morte e vai em direção à terra da vida".
A Quaresma, portanto, é um convite a empreender uma migração interior, abandonando o que nos afasta de Deus: o pecado, os vínculos materiais, a superficialidade e as falsas seguranças. A Igreja encoraja essa mudança espiritual em diversos documentos. A Constituição Pastoral sobre a Igreja no Mundo Contemporâneo ensina: "A Igreja, como sacramento da unidade de todo o gênero humano, tem a missão de promover a dignidade humana e o progresso dos povos" (GS 1). Esse apelo à unidade e à dignidade humana convida à solidariedade e à justiça, que começam no íntimo da vida espiritual.
O Papa Francisco, na exortação apostólica Evangelii Gaudium, recorda que "a vida cristã é um caminho, uma migração para Deus" (Evangelii Gaudium, 122). Essa migração implica um processo contínuo de conversão, um movimento rumo ao encontro pessoal com Cristo. O Catecismo da Igreja Católica ensina que "a conversão é um retorno a Deus de todo o nosso coração" (CIC 1431). Esse regresso, essa migração, implica um movimento interior em direção ao amor de Deus, uma mudança espiritual da desobediência para a obediência à vontade divina.
A Quaresma deve ser vista como uma migração do coração em direção à liberdade, à paz e à reconciliação com Deus. Nesse processo, somos convidados a olhar para os migrantes do mundo, que frequentemente experimentam fisicamente o que vivemos espiritualmente. A Igreja, seguindo o exemplo de Scalabrini, não apenas reconhece a dor da migração física, mas também nos chama a refletir sobre a nossa própria migração interior. Como Scalabrini dizia: "Em cada migração, há uma busca por uma vida melhor, e nossa verdadeira vida está em Cristo. Devemos migrar todos os dias em busca da santidade e da paz".
A Quaresma, então, nos convida a esse processo de migração espiritual. Trata-se de um movimento interior, um sair do nosso "Egito" pessoal – lugar de escravidão, zona de conforto, egoísmo, apego ao material, insensibilidade – e entrar na "Terra Prometida", onde se celebra a reconciliação, o amor de Deus, a fraternidade e a caridade.
Que nesta Quaresma esse processo seja entendido como uma purificação pessoal, na qual a solidariedade com os necessitados, especialmente os migrantes, brilhe como uma luz em meio às trevas do mundo atual.
Texto: Pe. Mauro José Organista Lupercio, CS.
Foto: Adobe Stock.