
A rápida, mas marcante passagem de Dom Scalabrini na Argentina
O ano era 1904, em 9 de novembro, Dom João Batista Scalabrini, na época Bispo de Placência, Itália, colocava seus pés em solo argentino. Partiu de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, Brasil, a bordo do navio “Camarões”, expressamente para visitar seu irmão Dr. Pedro Scalabrini, a quem não via há 36 anos.
Ao desembarcar em Buenos Aires, capital da Argentina, Scalabrini foi recebido pelo Arcebispo Dom Espinosa e Dom Sabatucci. Hospedou-se na residência de seu irmão e ficou dois dias no país. Em 11 de novembro, o Bispo e Fundador dos Scalabrinianos retornou à Itália, prometendo regressar à Argentina e fazer uma visita mais prolongada. Porém, não pôde cumprir a promessa, pois faleceu no ano seguinte, em 1º de junho, dia da Solenidade da Ascenção do Senhor.
Como era de se esperar, a presença de Scalabrini na Argentina não passou despercebida, ainda que tenha sido bem curta. Muitas foram as revistas e jornais que escreveram sobre sua estadia. A Revista Eclesiástica do Arcebispado de Buenos Aires, em 09 de novembro de 1904, escreveu: “A bordo do vapor Camarões, chegou de Porto Alegre (Brasil), Dom Scalabrini, Bispo de Placência (Itália) que está fazendo um giro pela América visitando as colônias italianas e estudando a maneira de vir ao encontro às suas necessidades religiosas”.
O jornal A Imprensa, em 10 de novembro de 1904, publicou as seguintes informações_: “(...) O Bispo foi recebido no porto pelo Núncio apostólico e pelo pároco da catedral. Permanecerá em Buenos Aires esta manhã, porém não tardará em regressar para o Rio da Prata para permanecer mais tempo. Amanhã, momentos antes de embarcar, rezará na catedral, por ocasião da festa de São Martinho de Tours”_.
Ainda em 10 de novembro de 1904, o folhetim A Nação escreveu as seguintes palavras a respeito do Bispo de Placência: “(...) já pelas primeiras palavras, o visitante impressiona positivamente, pois é um Bispo cheio de méritos, que possui um vasto conhecimento e fala seis ou sete idiomas. Além de suas tarefas eclesiásticas, Dom Scalabrini tem o cargo de Superior Geral da Associação de São Carlos, que tem por objetivo ‘enviar missionários às Nações onde há grandes grupos de italianos’”. E complementou: “(...) Dom Scalabrini veio à nossa cidade expressamente para visitar seu irmão que mora entre nós e hoje mesmo embarca de novo, a bordo do navio Sardenha, para chegar em tempo para celebrar, em sua Diocese, as solenes festas da Imaculada Conceição”.
O contexto migratório na época de Scalabrini
Na época em que Dom Scalabrini era Bispo de Placência, a Europa vivia um movimento intenso de pessoas. Portos como Liverpool, Rotterdam, Amsterdã, Hamburgo, Bremen, Le Havre, Gênova e Nápoles estavam cheios de migrantes e agentes de recrutamento que ofereciam passagens e promessas de novos destinos. Infelizmente, muitos exploradores se aproveitavam da situação, tirando o pouco dinheiro que essas pessoas tinham. Nesse cenário, uma rede de pessoas desonestas se aproveitava do medo dos migrantes.
Na metade do século XIX, na Itália, muitos migrantes saíam principalmente das regiões do norte. Milhares de pessoas estavam em busca de trabalho em países mais próximos e desenvolvidos, como Áustria, Alemanha, Suíça, França e Bélgica. Com o tempo, essa situação se espalhou e se tornou um dos maiores dramas sociais da história da Itália.
De um lado, a agricultura na Itália, sem os meios modernos de mecanização, não conseguia alimentar a população em rápido crescimento. Entre 1861 e 1901, a população saltou de 25,8 milhões para 33,7 milhões. Do outro lado, a indústria estava apenas começando e, sem regulamentação, não conseguia gerar empregos suficientes. Com isso, muitos italianos, de todas as regiões, se viram sem opção a não ser emigrar em busca de uma vida melhor.
De 1876 a 1905, durante os trinta anos em que Dom Scalabrini foi bispo, cerca de 8 milhões de italianos migraram. Mais de 3,8 milhões foram para a Europa, enquanto mais de 4 milhões partiram para as Américas: 1.771.000 para os Estados Unidos, 1.080.000 para a Argentina e 1.014.000 para o Brasil. O pico desse triste cenário aconteceu em 1913, quando 872.598 italianos deixaram o país, sendo 559.566 rumo às Américas e 313.032 para a Europa.
Argentina e a migração nos dias de hoje
Em um contexto de globalização e intensificação das desigualdades, a Argentina tem se tornado um destino cada vez mais importante para migrantes de países da América Latina, especialmente devido a sua proximidade geográfica, políticas migratórias mais acessíveis e condições de vida relativamente mais estáveis se comparadas a outros países da região.
A crise humanitária e política na Venezuela tem sido o principal motor do aumento da migração para a Argentina. Desde 2015, a Argentina se tornou um dos principais destinos dos venezuelanos que fogem da hiperinflação, do colapso dos serviços básicos, da repressão política e da falta de perspectivas econômicas. Em 2023, estima-se que mais de 200.000 venezuelanos tenham migrado para a Argentina, o que representa uma das maiores populações de refugiados na América Latina.
A migração paraguaia é histórica na Argentina e continua sendo um dos grupos mais numerosos. Aproximadamente 1,5 milhão de paraguaios vivem na Argentina, representando cerca de 2,5% da população total do país. A migração paraguaia tem sido motivada, principalmente, por questões econômicas, já que o Paraguai é um dos países com maiores índices de pobreza na região.
É significativa também a presença de bolivianos e peruanos, com muitos buscando trabalho nas cidades argentinas. Estima-se que cerca de 350.000 bolivianos e 300.000 peruanos vivam na Argentina, o que representa um fluxo contínuo desde o final do século XX, com forte presença de comunidades em Buenos Aires, La Plata, e outras grandes cidades.
Nos últimos anos, o perfil dos migrantes não latino-americanos na Argentina tem se diversificado, com o aumento da chegada de pessoas de África, Ásia e o Oriente Médio. Refugiados de países africanos como Senegal, Ghana, Somália e Sudão buscam trabalho tanto no mercado formal quanto no informal. Ao mesmo tempo, a Argentina tem se tornado um destino importante para sírios e libaneses, muitos dos quais fogem de conflitos no Oriente Médio. Além disso, a migração de chineses e outros asiáticos também têm aumentado com a chegada de trabalhadores ou empreendedores, especialmente nas grandes cidades como Buenos Aires e Córdoba.
A Missão Scalabriniana na Argentina
A presença dos Missionários de São Carlos na Argentina teve início em 1890, quando Dom João Batista Scalabrini enviou os missionários Padre Luigi Wagnest e Irmão Camillo Chiassoni, que partiram de Gênova no dia 24 de março. Foram destinados ao Estado de Entre Ríos, na Colônia agrícola de imigrantes italianos, Nossa Senhora de Balvanera. Logo depois, 1891, o Irmão Camillo faleceu, permanecendo o Pe. Luigi Wagnest na Colônia. No mesmo ano, os donos das terras venderam a Colônia para uma comunidade judaica provocando a saída das famílias italianas. Em 1892 o Pe. Luigi Wagnest foi destinado pelo Bispo para Helvecia, ao norte de Santa Fé, ali projetou uma igreja dedicada à Nossa Senhora do Carmo e solicitou a Dom Scalabrini mais um sacerdote e 4 irmãs para os serviços na escola e no hospital que estavam sendo construídos. De fato, Dom Scalabrini destinou para Helvecia, em 1896, o Pe. Pietro Colbachini, que acabou, porém, indo para o Rio Grande do Sul. Uma série de dificuldades obrigou Dom Scalabrini a chamar para a Itália o Pe. Wagnest. De 1900 a 1906 também trabalhou na Província de Santa Fé o Pe. Giacomo Annovazzi, porém, em 1906 voltou para sua diocese na Itália. Encerrava-se, deste modo, a primeira tentativa da presença Scalabriniana na Argentina.
Somente a partir de 1940 a Congregação se estabeleceu de forma definitiva no país, assumindo diversas missões. As negociações para essa nova fase começaram em 25 de março de 1938, quando o Pe. Tirondola e o Pe. Carlino chegaram a Buenos Aires.
A presença Scalabriniana na Argentina se concretizou com a chegada dos primeiros missionários: Pe. Oreste Tondelli, Ir. Eugenio Fagher e Pe. Lino Ceccato. Durante toda a Segunda Guerra Mundial, eles trabalharam sozinhos, enfrentando desafios significativos. Em 1945, o Pe. G. Guadagnini chegou do Brasil, seguido, em 1946, por um grupo vindo da Itália que incluía Pe. G. Favarato, Pe. G. Fabbian, Pe. A. Mascarello e Pe. M. Pegorin. Essa nova leva de missionários marcou um importante avanço na Missão Scalabriniana no País.
Em 12 de julho de 1952, a Missão Scalabriniana na Argentina foi oficialmente estabelecida como Província. Em 1951, o Núncio Apostólico Monsenhor Mario Zanin solicitou aos Missionários Scalabrinianos que atendessem as primeiras duas colônias italianas no Chile. Em 23 de dezembro de 1961, o Pe. Livio Dalla Paola assumiu a Capelania dedicada aos migrantes italianos no Uruguai, expandindo ainda mais o trabalho da Congregação na região.
Ao longo das décadas, a presença Scalabriniana na Argentina se expandiu de acordo com as necessidades dos migrantes, especialmente os italianos, mas também outros grupos de origens latino-americanas, como bolivianos, venezuelanos, peruanos e paraguaios.
A Congregação fundou diversas Paróquias em regiões com grande concentração de migrantes, como Buenos Aires, Bahia Blanca, Mendoza e outras cidades. Nesses locais, a assistência religiosa é acompanhada de atividades comunitárias e sociais, como catequeses e eventos culturais que fortalecem o sentido de comunidade e identidade. Uma característica da missão Scalabriniana na Argentina foi a preocupação com a formação intelectual dos fiéis e de seus descendentes, assim, quase todas as aberturas missionárias foram acompanhadas pela fundação de escolas. Atualmente, são 4 escolas no país, administradas pelos Scalabrinianos.
Além das Paróquias, os Scalabrinianos fundaram vários centros de acolhimento, orientação e apoio aos migrantes. Além de hospedagem, esses espaços oferecem não apenas apoio espiritual, mas também serviços essenciais, como suporte jurídico, aconselhamento psicológico, cursos de língua, integração cultural, atendimento médico e assistência alimentar.
Entre as muitas obras da Congregação Scalabriniana na Argentina, podemos destacar também o trabalho realizado através do centro Stella Maris. Esse apostolado presta assistência aos marinheiros e trabalhadores do mar, que enfrentam a realidade de deslocamento constante, isolamento e difíceis condições de trabalho. Muitos desses trabalhadores vêm de países vizinhos ou distantes, como Brasil, Paraguai, Filipinas e países africanos.
Nos últimos anos, a atuação Scalabriniana na Argentina tem se intensificado, especialmente com o aumento de fluxos migratórios da América Latina e de outras regiões do mundo. A Congregação tem atuado em parceria com organizações civis e instituições internacionais, como o ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados) e a OIM (Organização Internacional para as Migrações), além de defender o direito à regularização migratória, ao trabalho digno e à moradia.
Atualmente, os Scalabrinianos continuam seu trabalho com migrantes, que é cada vez mais desafiador, em virtude das novas dinâmicas globais de migração, como o aumento do número de refugiados e deslocados internos devido a conflitos, mudanças climáticas e crises econômicas. A presença Scalabriniana é uma resposta contínua e dinâmica a essas necessidades, sendo um sinal do compromisso da Igreja Católica com os marginalizados da sociedade.
O legado de Dom Scalabrini, iniciado em sua visita à Argentina, continua vivo, não apenas no cuidado espiritual, mas também na luta pela justiça social e pela dignidade dos migrantes em um mundo cada vez mais marcado pela mobilidade forçada e pelas desigualdades globais.
Texto: Vitor da Cruz Azevedo, Setor de Conteúdo do Departamento Regional de Comunicação (revisado por Pe. Evandro Antônio Cavalli, CS, Diretor do Departamento Regional de Comunicação).
Foto: Arquivo Regional